domingo, dezembro 25, 2005

As aventuras de Carlos Marques e Frederico dos Anjos na Vila dos Caetés

Lembro-me de quando Vila dos Caetés – uma bucólica cidadezinha cheia de árvores e quietude ­– foi transformada por um fato insólito, ou melhor, dois: o nascimento de Carlos e Frederico. O pai dos gêmeos, dotado de escassa beleza, foi eufórico regozijar-se com um amigo:
– Eles são muito parecidos comigo, eles são a minha cara!
– Deixe isso pra lá, o importante é que nasceram com saúde.
Sem entender a ironia devido à intensa felicidade, Hamilton Marques foi comunicar a todos sua opinião sobre a aparência dos filhos. O velho Afonso, avô dos línguas-de-trapos, decidiu permanecer em casa. Não gostava de nada que modificasse seu cotidiano, nem festas, nem revoluções. Passava o dia lendo romances, escrevendo alguns sonetinhos e falando expressões populares as quais ele tratava de transladar para seu português rebuscado.
Na manhã do dia seguinte, Hamilton recomeçava o trabalho. Ele vendia tudo, do alfinete ao foguete. Sempre conseguia persuadir os habitantes de Vila dos Caetés com suas ofertas, até mesmo clientes do tipo carne de pescoço. Frederico e Carlos, desde bem tenros, já demonstravam que não iriam ser meninos calmos. Urinavam em todos que lhes punham nos braços. Assim que adquiriram os primeiros dentes, resolveram morder os prestativos seios maternos. Trepavam em todos os móveis da casa. Não paravam quietos. Moleques buliçosos.
Aos oito anos, começaram a andar em cima de tábuas com quatro rodinhas. Eles eram assunto obrigatório em todas esquinas, principalmente na de dona Carolina, mexeriqueira oficial da cidade. Iam de um lado a outro da minha velha Vila dos Caetés gritando e fazendo estripulias. Isso ainda era suportável para a maioria dos habitantes, porém, quando começaram a escutar em volume excessivo um barulho que eles chamavam de Hardcore, as reclamações exasperadas começaram a bater na porta do senhor Hamilton Marques. Moleques buliçosos. Dona Maria dos Anjos, mãe dos traquinas, ousava embalde defendê-los:
– Isso é música.
Não obstante meus conhecimentos musicais se restringirem a Fagner e Belchior, sempre soube que aquilo não era música. Certo dia, várias gomas de mascar usadas estavam grudadas em minha porta e nas de vários vizinhos meus. Tínhamos certeza: era mais um ato de Carlos Marques e Frederico dos Anjos. As reclamações aumentaram. Os pais, enfim, notaram que havia algo diferente com aqueles dois. Eu, sinceramente, achava que aquela era a hora desses guris apanharem como boi ladrão. Quando alguém perguntava ao velho Afonso sobre seus netos, ele respondia rudemente:
– Solução para aqueles dois? Adestrar, porque educar não resolve.
Era um idoso beduíno, entretanto sempre o achei o mais sensato daquela casa. Os meninos estavam crescendo e adquirindo cada vez mais berliques e berloques. Quando apareceram frases escritas com tinta vermelha nos muros da cidadezinha, era líquido e certo que havia sido mais uma traquinice da dupla. Moleques buliçosos. Diante disso, o velho sábio advertiu:
– Podem retirar o filhote de eqüino da perturbação pluviométrica, esses meninos nunca vão tomar juízo.
– Papai – falou o ingênuo Hamilton – eles vão mudar. Eu vou conversar seriamente com eles e eles vão mudar.
– Isso não passa de prosopopéia flácida para acalentar bovinos...
Afonso já estava lânguido, não levantava nem falso testemunho. Com seus passos de cágado foi até a cozinha. Abriu a geladeira que estava qual boate: apenas luz e fumaça. Ao reclamar de tamanha inópia, caiu morto no chão. Foi estudar a geologia do campo santo. A família já esperava a ida daquele ser de comportamento imarcescível. Dona Maria dos Anjos chamou um padre para celebrar a missa. Enquanto divagava como bola sem manicla, pensou se o sacerdote que ali estava não poderia melhorar a inquietação de seus filhos.
Logo que a celebração eucarística acabou, a mãe dos gêmeos combinou a visita dos filhos àquele homem de Deus. Frederico dialogaria com o padre na hora do almoço, Carlos faria o mesmo na boca da noite. Ao saber do compromisso meio religioso que teriam, comentaram:
– Padres só servem para serem enterrados e observarmos se daqui a mil anos virarão petróleo.
– “Para padres não há razão, há cadeia”.
Mesmo assim pensando, Frederico estava na igrejinha pontualmente ao meio-dia. O sacerdote era um tanto austero, impunha respeito. Possuía um método próprio para tentar solucionar problemas dessa natureza. Mandou o menino sentar-se em uma cadeirinha branca no centro da sacristia. Olhou-o no fundo dos olhos e indagou:
– Onde está Deus?
Obtendo somente o silêncio como resposta, tornou a perguntar, agora em um tom mais agressivo:
– Onde está Deus? Diga-me onde está Deus!
Frederico foi tomado pelo medo. A boca aberta não conseguia pronunciar palavra alguma. Correu. Ofegava e, ao encontrar seu irmão, alertou-o:
– Parceiro, desta vez é um caso sério.
– Que houve, parceiro? Que houve?
– Cara, Deus sumiu. E adivinha em quem que eles estão colocando a culpa?
Decidiram, pois, fugir. A última notícia que tive deles é que estavam fazendo suas travessuras na Rússia. O certo é que a cidadezinha bucólica sofreu uma metamorfose maior que a daquela personagem de Kafka, Gregor Samsa. É incontroverso: Carlos Marques e Frederico dos Anjos, moleques buliçosos, revolucionaram a Vila dos Caetés.

Empréstimo dispendioso

Enquanto eu vivia a angústia de um jogo de xadrez, uma pessoa aparentemente comum se aproximou do tabuleiro. Cumprimentou meu adversário e falou-lhe a respeito de umas certas cartas de Paulo de Tarso. Assunto chato. Diante daquela boca pronunciando palavras de fé e alienação, veio-me um sentimento estranho o qual me afetou de tal forma que em menos de um minuto venci a partida. Apertei a mão de meu êmulo como de praxe tentando esvaziar-me debalde da empáfia que sempre me adentra quando ganho. Não consegui. Decidi, então, tentar mudar as atividades nas quais o recém-chegado utilizava seu tempo: em vez da mão lenta a passar as páginas da Bíblia, o dedo firme a movimentar peças. Empós de mais um confronto enxadrista, emprestei-lhe o xadrez de vidro, dado a mim por meu pai em meu aniversário de oito anos, junto a um livro básico.
Entrementes que agradecia, acendia um cigarro. Saiu cabisbaixo, fumando, pensando. Xadrez, bíblia, nicotina. Começamos a jogar de quando em vez e ele nunca conseguia me superar. Ele leu outros livros, quebrou o rei, colou-lhe os fragmentos, tentou derrotar-me por dois meses, desesperou-se e, por fim, suicidou-se. Não sei e creio que nunca saberei ao certo se essa sua última atitude possui alguma relação íntima com as anteriores. Os familiares escolheram a depressão, doença da alma, como bode expiatório.
Não me importei muito se os apreciadores de Émile Durkheim considerariam este ato um suicídio egoísta, altruísta ou anômico; porém fiquei interessado nos pensamentos últimos de um suicida. “Em que pensa o homem-bomba no exato momento de soltar o pino e estancar o tempo?”, já interrogava Mário de Sá-Carneiro que também terminou com a própria vida em 1916. Em que pensa o nazista antes de ingerir uma cápsula de cianureto? Em que pensa o terrorista antes de jogar um avião contra uma torre americana? Em que pensa a menina mal-amada antes de cortar os pulsos? No calor dos cigarros velhos daquele ledor da palavra de Deus, começavam a derreter minhas asas de cera e de certezas.
Camus anunciou: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia”. Essa caixa de Pandora dentro de um universo que é você mesmo desafia gregos e troianos. Não é tão fácil romper propositalmente essa fina película que está entre o mundo da fumaça, das correrias, das contas de água e luz e o mundo do céu, do inferno, do invisível e – quem sabe? – do inexistente. E quantos já se decepcionaram! Imagino algumas vezes alguns ateus ajoelhados suplicando perdão a São Pedro e outras vezes, alguns santos que doaram à vida por Cristo se transformando em mero pó. O maior medo que possuo agora é que o Zyklom B da dúvida acabe me matando (ou me suicidando).

quinta-feira, dezembro 15, 2005

Vagas, Plagas e Sorvetes

[Em desabafo a uma amiga desconhecida, ou não.]

Vai... Abandona esse amigo...
Vai pelas plagas mais longíquas
Se esvai como o sal nessa procela
Vai, que a nau não te espera para começar essa viagem
Vai pelas vagas nem sempre tranqüilas
Vai, deixa o amigo..
Deixe o amante que te aguarda
Mas não deixe o sorvete derreter...

segunda-feira, dezembro 12, 2005

Porque: - Angélica, não traga.

[...] Bêbada e ridícula, Angélica se entregou ao sexo oral. A tecnologia a serviço do demônio, pois coisa de Deus não havia de ser: Sony Cybershot 5.1 megapixels e Internet.
Depois de uma semana, toda a juventude do Jardim São Tomé e da Escola Nossa Senhora das Dores tinha as malditas fotos salvas em alguma pasta, escondida ou não, dos seus computadores. E o que era Angélica agora? Angélica não era Angélica, não era nada. Angélica era Gegel, Gegel Bola-gato, da Festa do Leonardo e das fotos na Internet.
Um desespero forte que pode fazer cortar os pulsos dominava Angélica. Rejeição, desprezo, desdém, motejos: esse era o novo mundo da princesinha do Ray-Ban, agora meio enferrujado com as lágrimas. Os olhos puxados não agüentavam mais chorar e o lábio era morto, calado, sem vida, sem batom, sem palavra.
Procurou seus cigarros. Mas pra quê? Não era vício, era moda, era um modo. Um modo de se aproximar dos mais velhos, de parecer mais velha, de ser superior, de ser notada. Não fazia sentido mais. Tanta carência de afeto...
- E o diabo desse menina não tem mãe, não?
Ter, tem, mas é como se não tivesse. Trabalha e namora muito, mal fica em casa. Angélica pegou de seus cigarros e do isqueiro e desatou a andar pela rua queimando-os. Sentado na calçada, lendo uns poemas de Manoel de Barros, seu Augusto aconselhou:
- Menina, não trague mais esses cigarros, não...
- Eu não trago mais.
- Pois você faz é bem. Olha que esses tragos só fazem mal pra gente.
- Eu sei, seu Augusto.
E após uma pausa e um olhar para si mesma, ela repitiu convicta:
- Eu sei...