Enquanto eu vivia a angústia de um jogo de xadrez, uma pessoa aparentemente comum se aproximou do tabuleiro. Cumprimentou meu adversário e falou-lhe a respeito de umas certas cartas de Paulo de Tarso. Assunto chato. Diante daquela boca pronunciando palavras de fé e alienação, veio-me um sentimento estranho o qual me afetou de tal forma que em menos de um minuto venci a partida. Apertei a mão de meu êmulo como de praxe tentando esvaziar-me debalde da empáfia que sempre me adentra quando ganho. Não consegui. Decidi, então, tentar mudar as atividades nas quais o recém-chegado utilizava seu tempo: em vez da mão lenta a passar as páginas da Bíblia, o dedo firme a movimentar peças. Empós de mais um confronto enxadrista, emprestei-lhe o xadrez de vidro, dado a mim por meu pai em meu aniversário de oito anos, junto a um livro básico.
Entrementes que agradecia, acendia um cigarro. Saiu cabisbaixo, fumando, pensando. Xadrez, bíblia, nicotina. Começamos a jogar de quando em vez e ele nunca conseguia me superar. Ele leu outros livros, quebrou o rei, colou-lhe os fragmentos, tentou derrotar-me por dois meses, desesperou-se e, por fim, suicidou-se. Não sei e creio que nunca saberei ao certo se essa sua última atitude possui alguma relação íntima com as anteriores. Os familiares escolheram a depressão, doença da alma, como bode expiatório.
Não me importei muito se os apreciadores de Émile Durkheim considerariam este ato um suicídio egoísta, altruísta ou anômico; porém fiquei interessado nos pensamentos últimos de um suicida. “Em que pensa o homem-bomba no exato momento de soltar o pino e estancar o tempo?”, já interrogava Mário de Sá-Carneiro que também terminou com a própria vida em 1916. Em que pensa o nazista antes de ingerir uma cápsula de cianureto? Em que pensa o terrorista antes de jogar um avião contra uma torre americana? Em que pensa a menina mal-amada antes de cortar os pulsos? No calor dos cigarros velhos daquele ledor da palavra de Deus, começavam a derreter minhas asas de cera e de certezas.
Camus anunciou: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental da filosofia”. Essa caixa de Pandora dentro de um universo que é você mesmo desafia gregos e troianos. Não é tão fácil romper propositalmente essa fina película que está entre o mundo da fumaça, das correrias, das contas de água e luz e o mundo do céu, do inferno, do invisível e – quem sabe? – do inexistente. E quantos já se decepcionaram! Imagino algumas vezes alguns ateus ajoelhados suplicando perdão a São Pedro e outras vezes, alguns santos que doaram à vida por Cristo se transformando em mero pó. O maior medo que possuo agora é que o Zyklom B da dúvida acabe me matando (ou me suicidando).
domingo, dezembro 25, 2005
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