Lembro-me de quando Vila dos Caetés – uma bucólica cidadezinha cheia de árvores e quietude – foi transformada por um fato insólito, ou melhor, dois: o nascimento de Carlos e Frederico. O pai dos gêmeos, dotado de escassa beleza, foi eufórico regozijar-se com um amigo:
– Eles são muito parecidos comigo, eles são a minha cara!
– Deixe isso pra lá, o importante é que nasceram com saúde.
Sem entender a ironia devido à intensa felicidade, Hamilton Marques foi comunicar a todos sua opinião sobre a aparência dos filhos. O velho Afonso, avô dos línguas-de-trapos, decidiu permanecer em casa. Não gostava de nada que modificasse seu cotidiano, nem festas, nem revoluções. Passava o dia lendo romances, escrevendo alguns sonetinhos e falando expressões populares as quais ele tratava de transladar para seu português rebuscado.
Na manhã do dia seguinte, Hamilton recomeçava o trabalho. Ele vendia tudo, do alfinete ao foguete. Sempre conseguia persuadir os habitantes de Vila dos Caetés com suas ofertas, até mesmo clientes do tipo carne de pescoço. Frederico e Carlos, desde bem tenros, já demonstravam que não iriam ser meninos calmos. Urinavam em todos que lhes punham nos braços. Assim que adquiriram os primeiros dentes, resolveram morder os prestativos seios maternos. Trepavam em todos os móveis da casa. Não paravam quietos. Moleques buliçosos.
Aos oito anos, começaram a andar em cima de tábuas com quatro rodinhas. Eles eram assunto obrigatório em todas esquinas, principalmente na de dona Carolina, mexeriqueira oficial da cidade. Iam de um lado a outro da minha velha Vila dos Caetés gritando e fazendo estripulias. Isso ainda era suportável para a maioria dos habitantes, porém, quando começaram a escutar em volume excessivo um barulho que eles chamavam de Hardcore, as reclamações exasperadas começaram a bater na porta do senhor Hamilton Marques. Moleques buliçosos. Dona Maria dos Anjos, mãe dos traquinas, ousava embalde defendê-los:
– Isso é música.
Não obstante meus conhecimentos musicais se restringirem a Fagner e Belchior, sempre soube que aquilo não era música. Certo dia, várias gomas de mascar usadas estavam grudadas em minha porta e nas de vários vizinhos meus. Tínhamos certeza: era mais um ato de Carlos Marques e Frederico dos Anjos. As reclamações aumentaram. Os pais, enfim, notaram que havia algo diferente com aqueles dois. Eu, sinceramente, achava que aquela era a hora desses guris apanharem como boi ladrão. Quando alguém perguntava ao velho Afonso sobre seus netos, ele respondia rudemente:
– Solução para aqueles dois? Adestrar, porque educar não resolve.
Era um idoso beduíno, entretanto sempre o achei o mais sensato daquela casa. Os meninos estavam crescendo e adquirindo cada vez mais berliques e berloques. Quando apareceram frases escritas com tinta vermelha nos muros da cidadezinha, era líquido e certo que havia sido mais uma traquinice da dupla. Moleques buliçosos. Diante disso, o velho sábio advertiu:
– Podem retirar o filhote de eqüino da perturbação pluviométrica, esses meninos nunca vão tomar juízo.
– Papai – falou o ingênuo Hamilton – eles vão mudar. Eu vou conversar seriamente com eles e eles vão mudar.
– Isso não passa de prosopopéia flácida para acalentar bovinos...
Afonso já estava lânguido, não levantava nem falso testemunho. Com seus passos de cágado foi até a cozinha. Abriu a geladeira que estava qual boate: apenas luz e fumaça. Ao reclamar de tamanha inópia, caiu morto no chão. Foi estudar a geologia do campo santo. A família já esperava a ida daquele ser de comportamento imarcescível. Dona Maria dos Anjos chamou um padre para celebrar a missa. Enquanto divagava como bola sem manicla, pensou se o sacerdote que ali estava não poderia melhorar a inquietação de seus filhos.
Logo que a celebração eucarística acabou, a mãe dos gêmeos combinou a visita dos filhos àquele homem de Deus. Frederico dialogaria com o padre na hora do almoço, Carlos faria o mesmo na boca da noite. Ao saber do compromisso meio religioso que teriam, comentaram:
– Padres só servem para serem enterrados e observarmos se daqui a mil anos virarão petróleo.
– “Para padres não há razão, há cadeia”.
Mesmo assim pensando, Frederico estava na igrejinha pontualmente ao meio-dia. O sacerdote era um tanto austero, impunha respeito. Possuía um método próprio para tentar solucionar problemas dessa natureza. Mandou o menino sentar-se em uma cadeirinha branca no centro da sacristia. Olhou-o no fundo dos olhos e indagou:
– Onde está Deus?
Obtendo somente o silêncio como resposta, tornou a perguntar, agora em um tom mais agressivo:
– Onde está Deus? Diga-me onde está Deus!
Frederico foi tomado pelo medo. A boca aberta não conseguia pronunciar palavra alguma. Correu. Ofegava e, ao encontrar seu irmão, alertou-o:
– Parceiro, desta vez é um caso sério.
– Que houve, parceiro? Que houve?
– Cara, Deus sumiu. E adivinha em quem que eles estão colocando a culpa?
Decidiram, pois, fugir. A última notícia que tive deles é que estavam fazendo suas travessuras na Rússia. O certo é que a cidadezinha bucólica sofreu uma metamorfose maior que a daquela personagem de Kafka, Gregor Samsa. É incontroverso: Carlos Marques e Frederico dos Anjos, moleques buliçosos, revolucionaram a Vila dos Caetés.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
falae muleque, tranquilo? vi teu site no orkut..tu q escreve isso tudo? maneiro.. de vez em quando tambem curto escrever, da uma olhada no site q eu escrevo algumas colunas. E fortal comeh q ta? aehuaeh ta acabando!
abs
Postar um comentário