Não foram os dois tragos de cachaça que lhe entortaram as vistas. Era assim desde novo, nascera assim. E muitos tomavam por motivo de galhofa a assimetria dos olhos do moço. Nada mais cômico do que a miséria humana com seus defeitos e suas aberrações.
É claro que todos os pseudônimos de infância abordaram essa característica. Assim acostumou-se ao fato de ter uma diferença facilmente perceptível em relação aos outros humanos que via. Nem lhe afetava objetivamente o fato, pois o hábito da leitura era constantemente desenvolvido sem a ajuda de óculos, lentes, lupas ou coisas que o valham. Aqueles olhinhos tortos já haviam degustados grandes clássicos da literatura mundial, incluindo obras premiadas com o Nobel. Até mesmo bem melhor que as denominações brasileiras para as pessoas com esse defeito, lhe cabia o vocábulo castelhano tuerto. Nem só dos olhos, percebiam os mais atentos, pois também tinha um ligeiro desvio do septo nasal. No entanto, assim tinha bem vivido – sem problemas com as letras miúdas dos romances clássicos, mas com problemas nos romances reais próprios da sua juventude.
No colégio, a cada série lhe surgia um novo apelido, e soava estranho aos ouvidos mais direitos, que se ouvisse falar de algum Evaristo. Apesar de ser um dos mais famosos rapazes da turma, se alguém vinhesse a perguntar por alguém de nome Evaristo em seus círculos de amizade, até os mais próximo, receberia com quase total certeza uma resposta negativa. Era incrível como a estranheza do olhar superava facilmente a estranheza do primeiro nome. Evaristo? Não. Mas vesgo, zarolho, cobre-e-alinha, frente-e-esquerda, e alguns outros era bem comuns ao conhecimento de todos. Quando começou a freqüentar as aulinhas de espanhol, os mais moleques tentaram diversas formas de troça – bizco, bisojo – mas o que pegou mesmo até pela melhor semântica foi tuerto. Cresceu assim, vendo o nome que sua mãe lhe dera apenas na carteira de identidade já desgastada pelo tempo. E poucos liam os dados de nome, filiação ou naturalidade de seu registro cadastral porque a simples comparação dos olhos vistos no documento e os olhos que se apresentam no rosto do dito cujo era mais do que suficiente para sua completa identificação.
Para que saibamos: vesgos também amam. Apesar de quaisquer aspectos físicos notoriamente diferenciais, o ser humano tem como um dos seus sentimentos naturais o amor. Ele só foi conhecê-lo quando, voltando da mercearia, viu um fichário do ursinho pooh no chão e ao lado dele, igualmente no chão, uma senhorita desapercebida que havia topado num sei-lá-o-que pelo caminho. Deu-lhe a mão que se reerguer-se e pegou o fichário, deixando escorrer um livro fino de seu interior. Sem ler nem sequer o título, abaixou-se novamente e devolvendo o escrito, comentou:
- Bom livro, moça.
Foi o suficiente. Ignorando a imperfeição dos olhos, agradeceu à cortesia com um sorriso. Não era um sorriso que se chame de bonito; a ausência de um canino, a cor escura de três dentes e a gengiva bem exposta não lhe permitiam o uso desse adjetivo – mas ria. Para personalizar o agradecimento e sem outras intenções, interrogou:
- Qual o seu nome?
E o silêncio pairou nos ares por um bom tempo. Procurava entre as várias denominações recebidas durante a vida, aquela mais real, que se registrava na certidão de nascimento. E apesar de desconfiar de duas, não tinha certeza de qual. Em um momento de meias certezas, quis lançar Tuerto, com inicial maiúscula, porém um nome extrangeiro poderia soar pedante. E naquele instante se deu conta do resultado da repetição constante dos pseudônimos em seus ouvidos: até então tinha sido muito mais vesgo do que homem.
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